quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Votação do Plano Diretor apontou uma verdade: a cidade tem dono

Elaine Tavares

Em menos de dois dias, a Câmara de Vereadores de Florianópolis votou um projeto de Plano Diretor, alterado por quase 700 emendas. Todos os ritos foram patrolados, nada impediu que, entre sorrisos de mofa, os vereadores fossem aprovando uma a uma, as emendas que continham os interesses dos grandes empresários. Alguns dos nobres edis davam claros sinais de que sequer sabiam do que se tratavam as emendas. É que não estava em questão o conteúdo e sim o princípio: fazer a vontade do capital.

Uma cidade como Florianópolis é como uma galinha de ovos de ouro para as empresas do ramo turístico. Quarenta e duas praias, clima agradável, um bom verão. Assim, se considerarmos que no sistema capitalista tudo é espaço de conquista de lucro, não haveria razão para se pensar que no espaço da cidade isso fosse ser diferente. Afinal, qual a razão de se aumentar o gabarito (numero de andares edificáveis) na região do Estreito, se ali já existem prédios de 15 andares? Ora, foi construída uma beira-mar continental, que hoje tem na sua margem uma série de imóveis velhos, de costas para o mar. Ali, agora, poderão se erguer espigões. Os donos dos prédios estão esfregando as mãos, suas propriedades dobraram de valor. E as construtoras que erguerem ali as torres habitáveis, também vão auferir lucros estratosféricos. Um apartamento a um milhão. Façam as contas.

E assim, cada alteração de zoneamento, cada alteração de gabarito, foi milimetricamente pensada para  gerar lucros. Seja para os que ora possuem as propriedades ou para os que as possuirão. É um azeitado jogo de interesses no qual os que saem perdendo são aqueles que querem um mundo diferente, que não seja esse, capitalista, baseado no lucro. O filósofo britânico, David Harvey, que esteve há pouco na cidade, deixou isso bem claro, quando falou da transformação das cidades em espaços especulados: " Para construir uma cidade diferente, é preciso ser anticapitalista". E nessa terra nossa, quem é?

Assim que a luta que se travou nos dias de votação da Câmara de Vereadores já tinha um vencedor bem antes de o plano entrar na casa. Todo o jogo de cena de que a população havia construído o plano por sete anos, divulgado pela mídia, que a discussão tinha acontecido, que as pessoas sabiam muito bem do que se tratava, era o manto da ilusão necessário para enganar a maioria. Numa cidade de quase quinhentos mil habitantes, com um movimento popular desarticulado e alquebrado, a opinião pública que se formou foi a de que o plano é bom e vai ajudar a cidade a progressar.

Quem viu o puxa-saquismo da RBS na entrevista com o prefeito nessa quinta-feira sabe bem do que estou falando. Quem, em sã consciência pode ficar imune aos discurso de que as praças públicas estão cheias de gente drogada, que os parques só servem para juntar marginais e que a falta de marinas e hotéis de luxo vai fazer faltar emprego? Para aqueles que sofrem a cidade diuturnamente, na falta de mobilidade, na insegurança, no desemprego, esses anúncios de vida melhor soam como cantos de sereia. Essas maiorias que passam 70% do seu dia tentando sobreviver, não tem tempo para estabelecer os nexos entre as promessas feitas na televisão e o seu completo descumprimento na vida real. Há que levar o leite para casa.

Para que a população pudesse desvelar as mentiras teria de existir um movimento popular e comunitário atuante e, principalmente, anticapitalista. Não tem. Temos vários grupos lutando na cidade por questões bem específicas. Passe livre, ciclovias, saneamento, mulheres, negros, homossexuais, sindicatos. E cadê que esses movimentos debatem junto com suas pautas específicas os destinos da cidade, como um projeto de espaço coletivo de vivência? Cadê que esses movimentos circulam pelas comunidades descortinando o véu do engano que a mídia comercial ajuda a disseminar? Cadê que eles articulam as variadas lutas num projeto anticapitalista de fato?

É que a luta pela cidade é a luta contra o capital. Não há espaço para meio-termo. O passe-livre sozinho não desescraviza o trabalhador. O saneamento sozinho não garante bem-viver, mover-se melhor na cidade não significa que se possa ir onde se quer. Tudo isso fica perdido se não for para libertar as pessoas da sociedade do consumo e do lucro. É só a tentativa de "humanização" do capital, obra inútil porque inalcançável. É da natureza do sistema a destruição do ambiente e do homem.

A batalha travada na Câmara pelo plano diretor já começou com um vencedor. Os lutadores que lá se fizeram presente, em torno de 100 almas, sabiam muito bem o que estavam enfrentando. Entre eles, ainda se podia observar um pequeno grupo de pessoas puras, que estavam realmente indignadas com toda a farsa promovida pelos vereadores e com a burla de todas as leis. Muitos acreditavam que a presença ali, em protesto e gritos de alerta pudesse mudar o resultado de um jogo já acertado no tapetão. Não podia.

Entre os militantes calejados, anticapitalistas por convicção, não existia ilusão. O sistema capitalista tudo aplasta e não está preocupado com nada além do lucro. Nesse processo, ainda estão os serviçais, que conseguem arrebanhar as migalhas do banquete. Qualquer lucro é bem vindo, porque essa é a essência. E foi o que se viu. Nos votos contra a entrega da cidade para a especulação, quatro vereadores resistiram. Os demais estavam de acordo, cada um por sua razão.

E enquanto a vida de todos era vendida por 30 dinheiros, a população seguia seu curso, na correria para pegar o ônibus, assistindo a um recital, participando de uma reunião qualquer para amenizar alguma dor, ou garantir algum pequeno avanço. Muitas pessoas assistiram a "confusão" causada pelos "de sempre", os "anti-progresso", na televisão e balançaram a cabeça em desaprovação.  No gabinetes, os donos do dinheiro celebraram com champanhe. Não estão preocupados com ambiente, vida boa, saúde, equilíbrio. Tudo o que querem é muitos zeros na conta bancária.

Daí que, para terminar, o que podemos dizer é que só há uma alternativa para os que lutam: reforçar a batalha contra o capital, contra o modo capitalista de organizar a vida. Ou isso, ou seguiremos afogados pelo desejo de consumo fomentado pelo sistema. Não dá para ser ingênuo acreditando que pequenas reformas nos levarão ao céu. O poder do capital dá o que quer dar. E nesses dias deixou bem claro: a cidade é dele e ponto final. Qualquer concessão que veio ao encontro dos desejos das comunidades está amarrada em um interesses econômico maior.

3 comentários:

  1. Poxa! E a OAB? E o Ministério Público? E a Ação Civil Pública? Ainda não foi julgada... a população e as entidades não podem pressionar para que a votação seja anulada?

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  2. Caro colega Lino Peres,
    Não sei se lhe servirá de consolo ou amenizará suas dores, mas não posso me furtar a comentar.
    Parabéns pela isenção intelectual e pela lucidez e objetividade com que tratou a questão do Plano Diretor e a forma como foi tratado.
    Pois bem, já de algum tempo, embora respeitasse as boas intenções que um Plano Diretor pudesse abrigar, nunca vi nenhum deles que pudesse atingir resultados importantes na qualificação dos espaços urbanos. A partir da instalação do Ministério das Cidades, aquilo que deveria ser uma luz no fim do túnel, uma esperança para arquitetos e urbanistas, transformou-se numa grande frustração, pois que a iniciativa não se desvestia de um cunho ideológico e, ingenua ou maquiavelicamente, usava (e continua usando) a DEMOCRACIA como pilar de sustentação.
    E o que temos assistido? Um circo de horrores que, você, elegantemente chama de interesses financeiros dos "donos" das cidades.
    Recentemente, ao ler seu artigo sobre as possíveis mudanças, já me antecipava também aos resultados, postando um comentário a outra colega nossa, Sonia Afonso, da Universidade Federal de Santa Catarina que também deve ser sua conhecida. Neste comentário fiz alusão à esta confusão que se estabeleceu entre DEMOCRACIA e SABEDORIA, à falta de qualidade e isenção intelectual de diversos entes e entidades que participam de certas decisões, fato que combale ainda mais o papel que URBANISTAS deveriam exercer nas propostas e soluções na QUALIFICAÇÃO ou REQUALIFICAÇÃO dos espaços urbanos.
    Finalizo, solidarizando-me com suas ideias e posturas e, na esperança de que uma coalizão de lideranças positivas e do bem possam mudar este cenário desolador que tomou conta das nossas cidades.
    Um abraço
    Vital Kuriki / Arquiteto e Urbanista

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    1. Prezado Vitor K., agradeço suas palavras de apoio e reconhecimento. São reflexões às quais me somo na perspectiva de uma cidade melhor, de acesso para todos, com uma urbanidade tão desejado por nós, arquitetos, e a cidadania em geral. A tramitação atropelada do Plano Diretor, o desrespeito à legislação federal que garante a ampla participação da socidade organizada através do Est. da Cidade e da Resolução 25, provocaram descontentamento na maioria dos setores, rep. distritais dos movimentos socias, passando por críticas de caráter técnico da categoria dos arquitetos (CAU e IAB), engenheiros (CREA), OAB, até o setor empresarial (Floripa Amanhã). Todos pediram mais tempo para melhor aprofundar o debate. A Sonia é uma colega e amiga que tem acompanhado esse processo. Nesse momento estamos analisando os impactos das emendas e sua repercussão, e disponibilizaremos em breve os resultados. Contamos com sua atenta participação.
      Um abraço
      Lino Peres

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